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RUA DAS AMOREIRAS, 25

In memoriam de Natália de Matos (Maria Natália Rodrigues de Matos: Ovar, 20 de Dezembro de 1938-5 de Maio de 2020)

por Eugénia Vasques

 

Longos anos de trabalho prático, efectuado em Técnicas de Voz e suas áreas complementares, levam-me a afirmar que o mais importante na formação de um aluno -- seja ele ou não futuro actor – é o investimento feito no seu trajecto vocal. As aquisições técnicas realizadas e tornadas automatismos, ao longo desse percurso, são os grandes alicerces em que assenta qualquer profissão que dependa da voz falada ou cantada. [. . . ] Um professor de voz deve saber identificar problemas vocais de vária ordem. Quando são do seu foro, deverá tentar estudá-los e encontrar a forma mais adequada para os ultrapassar.

Por vezes, é necessário recorrer a um foniatra para fazer exames às cordas vocais ou avaliar outros problemas. Feita uma estroboscopia, o professor de voz é informado pelo médico do estado das cordas. Se existirem nódulos ou outras anomalias, não se poderá iniciar um trajecto vocal, pois corre-se o risco de agravar o problema. No caso dos nódulos, ou em fase operatória dos mesmos, só a terapia é aconselhável. (Natália de Matos, 1996) Como lembra Fernando Heitor, um aluno-actor da safra do início dos anos 70 do nosso comum Conservatório (actualmente Escola Superior de Teatro e Cinema), Natália de Matos fazia parte, com João Mota e Francisco D’Orey (1931-2020) e também Águeda Sena (1927-2019) ou Glória de Matos, do grupo de jovens assistentes que, nos anos da Reforma Veiga Simão/Madalena Perdigão (1970-71) e do subsequente Período de Experiência Pedagógica (1971-1974), faziam o seu treino docente com os vários artistas estrangeiros (G. Shelley, Old Vc; Nico Pepe, Piccollo de Milano, etc.) convidados para auxiliar a Comissão Orientadora da Reforma do Conservatório. Natália de Matos e D’Orey, na sequência de convite pessoal de Madalena Perdigão (1923-1989), foram os assistentes de Bettina Jonic Calder, que assessorava, na componente vocal, o encenador britânico Peter Brook, um dos convidados a auxiliar na reforma do ensino artístico em Portugal.

“O trabalho da Natália de Matos tinha acabado, de vez, com as pedrinhas na boca (que quase engolíamos!) da Germana Tânger [1920-2018]”, lembra Luis Aguilar, também aluno desta fase de reforma e um dos mais jovens docentes da Escola de Teatro (e meus) no final dos anos 70. E assim, pela porta inovadora da reforma, faz a sua entrada nas nossas vidas a cantora Natália de Matos oriunda da Escola de Música, onde fora assistente da sua velha mestra, a cantora lírica Arminda Correia (1903-1988). ** Natália de Matos, com uma formação muito diversificada em Música (piano, violoncelo, ópera, lied e sobretudo técnica vocal) que reflecte a sua curiosidade e os seus interesses cedo direccionados para o ensino, pertencia a uma escola de pensamento que defendia, esteticamente, a oposição entre Voz Natural e Voz Metamorfoseada e entendia que, no Teatro, a pauta do actor devia permitir-lhe, graças à técnica vocal e à respiração abdominal-costal, criar atmosferas, sensações e sentimentos, recorrendo a um domínio de expressões, atitudes e gestos.

Por essa razão, promovia uma educação da voz (Expressão Oral) e do corpo (Movimento) com vista ao fortalecimento físico do actor, ao aumento da sua consciência vocal visando atingir os “automatismos” que “envolvem o corpo na sua totalidade” e permitem atingir uma elocução que sirva o texto, através “dos seus vários estilos e formas métricas”.

O canto era, nas suas aulas, um instrumento, não um fim em si, ainda que a Professora defendesse, tal como muitos dos mestres com os quais trabalhou (André Roos, de Strasbourg, por exemplo), que se devia aumentar a cultura musical dos estudantes por meio de um repertório que ia, com felicidade, do vaudeville à música medieval, da música do século XVI ao século XIX, de Mozart a Brahms, dando importância à “canção popular” quer portuguesa, quer espanhola – que estudou --, quer francesa ou alemã. Natália de Matos, amada e temida Professora de muitas gerações de actores portugueses que lhe dedicam um grande e carinhoso reconhecimento, defendia, de acordo com uma formação epocal que a conduziu da Suiça à França, da Espanha a Inglaterra, de Viena a Itália, uma técnica de “trajecto vocal”, uma pedagogia de continuidade (alunos com o mesmo docente do 1º ao 3º ano), o que conseguiu durante os seus quase trinta anos de carreira (excepção feita para os seus dois últimos anos de ensino). Defendia, igualmente, que as turmas da disciplina de Voz não ultrapassassem um dado nº de alunos e se evitasse, conscienciosamente, a massificação.

A nossa Professora era sensível aos problemas da voz e das cordas vocais dos indivíduos e ao estabelecimento de uma relação mestre-aluno “sadia no sentido de atingir, de forma descontraída, os objectivos pretendidos numa área [. . .] que pode envolver a própria identidade do aluno.” Marcava, com rigor e carácter austero, as actividades individuais e de conjunto na sala de aula, com recurso ao piano, a audiovisuais simples (aliás, não havia outros!), a máscaras, a vestuários leves ou pesados, a sapatos altos ou coturnos e outros materiais promotores de posturas físicas diversificadas que exigissem flexibilidade vocal e equilíbrio no desequilíbrio. Neste sentido, Natália de Matos promoveu, no decurso dos anos 70-80, um inicial trabalho de cooperação com professores de Corpo partilhando semelhantes objectivos técnicos, na procura de uma relação Corpo-Voz indutora de experimentação e da consciencialização do actor.

Era, aliás, com estes mesmos objectivos que procurava, fora da Escola, espaços abertos ou fechados que oferecessem dificuldades acústicas variadas aos estudantes-actores e com eles estudava soluções que não lhes comprometessem as cordas vocais e permitisse uma maior projecção mesmo sem instrumentos de amplificação de som.

Na sua simplicidade de “mulher do Norte”, que cozinhava muito bem, que nunca cedeu às vicissitudes de uma vida atribulada e nem à doença que, com sentido anglo-saxónico de “privacidade”, escondeu até ao fim, Natália de Matos fez a sua revolução suave no território da educação vocal. Foi cantora e actriz – é comovente imaginá-la em masculino Bastien, na ópera de Mozart, ainda nos anos 50 da sua formação --, cruzou-se com grandes artistas nacionais e internacionais mas, de tudo o que fez, nos teatros, nas rádios, nas televisões, com professores, actores e cantores, foi o seu sentido de maternal cuidado que nos legou a todos, velhos e novos alunos, foi a sua dedicação exigente e a sua amorável solidariedade em qualquer situação de necessidade.

Choramo-la. Mas a vida, também profissional, não lhe foi fácil.

 

Lisboa, 5 de Maio de 2020, Dia Internacional da Língua Portuguesa